sexta-feira, 4 de maio de 2012

Minha Flor - Marcelino Freire


Filho, sua mãe é homossexual.
Está amando outra mulher e sendo amada.
Filho, entenda. Como dizer isso? Não passa de hoje, quando chegar em casa. São três horas da madrugada. Ele me esperando, acordado, preocupado. Filho, é isso. O mundo anda tão evoluído, moderno. Flor está comigo, Passeia nas minhas coxas. Tomo whisky, fumo fumaça. Filho, não tenho culpa. Sua mãe também é gente, ser humano. Moda liberada, ano 2000. Filho, eu te amo.
                Seu pai foi o homem que mais amei. Quando o vi pela primeira vez, aconteceu. Aconteceu já na primeira vez uma vida toda. Insisti, fui atrás. Abanei meu charme, me humilhei pra cachorra. Até que ele cedeu, filho. Fui a mulher mais feliz do bairro. Fui feliz, uma alma encantada no universo. Não reclamo. Seu pai foi ótimo, me deu tudo. Seu pai, um homem sério. Mas ele morreu. Morreu, filho, faz cinco anos. Mas não desapareceu. Seu pai ainda é meu.
                Chego hoje e digo, de hoje não fujo. Flor me deixa no prédio, subo. Flor me beija, Flor me aquece. Conto tudo. Como foi, por que foi. Por que essa angustia. Não desejo morrer assim, feliz só pra mim, é difícil.
                Filho, se você estivesse aqui do meu lado. Como seu pai, agora está, acredito. flor parece com seu pai. Flor diz coisas muito iguais. Gosta de Bach, Mozart, gosta de charutos. Filho, ela gosta de charutos. Bebe o mesmo vinho.
                Querido, não precisa chamar ninguém de madrasta. Padrasto então, não tem isso. O pessoal pergunta: quem é o homem? Quem é a mulher? Absurdo. Eu e seu pai fazíamos coisas que até a vida duvida. Filho, hoje eu quero chorar, desabafar, eu quero me libertar. Preciso.
                Vamos embora. Flor. E flor quis ficar mais um pouco. Apertando a minha mão. Dizendo para eu não me precipitar. Preocupada que ela está. Flor tem a sua idade.
                Não se assuste, filho. Ela parece mais velha. Ela parece ter a idade do seu pai, acredite. Tem um coração antigo, no bom sentido. Coração maduro e leve. Bem leve.
                Beijo o batom de Flor, arranco o batom fora, a pétala. Vamos embora.
                Fomos.
                Sei que não é de agora que você acha estranho meu novo comportamento. Felicidade e festa. A gente fica incorporando uma criança.
                A gente saltita. Você me pegou várias vezes ao telefone, vermelha. Sussurrando pelos cantos, vermelha. Demorando no chuveiro, saindo para viajar. Tomando bronze no Guarujá. Indo ao cinema, dançar. Tendo cada vez menos saudades do seu pai. É mentira. Quando estou com Flor seu pai participa. E isso não tem nada a ver, repito, com quem dorme em cima ou dorme embaixo. Filho, o carro chegou. Tenho a impressão de que o porteiro desconfiou. O porteiro olha pra mim, sorri. Sabe sorriso vigilante? Sabe sorriso conquistador? Sabe sorriso no escuro? Cambaleante, entro no elevador. Puxo uma respiração. Olho minha vida no espelho. Hoje não tenho medo.
                Entro devagar. Não quero assustar passarinhos. Lembro que quando namorava seu pai, a gente não corria atrás de pombos. A gente chegava aos poucos, irmanados. A gente trazia pão e trazia nossas mãos. Felizes. Seu pai, filho, me deu tanto amor que foi esse amor que pôs Flor no meu caminho. Só quem ama assim é que entende. E mais que entende, sente. Você me ama, filho. Nada entre a gente teve fim. Filho, de novo eu digo: te amos demais. Por isso quero repartir, compartilhar. Olhar o sol já se abrindo no seu quarto.
                Na cama, já. Não me esperou chegar. Desligo a luz ligada, recolho a revista do seu colo. Filho querido, esse frio. Não tem frio. Puxo o lençol até seu peito. Deixa, filho, pra lá.
                A mesma felicidade é amanhã, assim que o mundo acordar.


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